Clipping :: Consumidor Moderno no Varejo – Final Feliz?
Final Feliz?
Março/2010
A evolução dos livros em papel para o formato digital é uma história com diversos personagens que ainda está sendo escrita. Não se pode afirmar, entretanto, qual o destino reservado a um dos protagonistas dessa obra: as livrarias
Diariamente, após uma jornada de trabalho por vezes puxada, Marcílio D’Amico Pousada se recosta na cabeceira da cama e se põe a ler. Naquela última semana de fevereiro, o livro da vez era “História do Brasil com Empreendedores”, em que o historiador Jorge Caldeira narra a importância dessa figura para a construção da economia e sociedade nacional desde os tempos de colônia. Pousada também lê no táxi ou em aviões, em viagens de negócios ou não. Por ano, ele devora cerca de 50 livros – em média, um por semana. Seria bem mais fácil se todos os títulos estivessem disponíveis num único lugar: um tablet ou um leitor eletrônico (e-reader), por exemplo. Por ora, ele mantém os de papel.
Pousada é o presidente da rede de livrarias Saraiva, companhia com 95 anos no mercado que dita tendências e se reinventa quando preciso. Foi assim com a abertura da primeira megaloja do gênero no País, em 1996; o lançamento do primeiro site de vendas do Brasil em 1998, que hoje responde por 35% de seu faturamento; e a compra da rival Siciliano, em 2008. Agora, com livros disponíveis em formato eletrônico para download na internet (e-books) e a curiosidade em torno dos e-readers mundo afora, talvez seja a hora de mudar novamente.
Nos Estados Unidos, com um mercado literário que movimenta US$ 25 bilhões ao ano, as vendas de e-books saltaram de US$ 67 milhões em 2007 para US$ 113 milhões no ano passado. A Forrester Research estima que três milhões de aparelhos para ler livros eletrônicos foram vendidos no ano passado nos Estados Unidos.
A ameaça sobre os livros de papel começou a ganhar força com o lançamento do Kindle em 2007 pela gigante do varejo on-line ianque Amazon. Com acesso às redes 3G e Edge, o usuário consegue baixar aproximadamente meio milhão de títulos em formato PDF na loja virtual por um preço médio de US$ 9,99 cada (três vezes menos que os impressos; alguns títulos não saem por mais de US$ 2) e pode ler em qualquer lugar. No ano passado, com um novo modelo capaz de armazenar 3,5 mil obras e a distribuição em mais de cem países, as vendas aumentaram.
O dia 25 de dezembro ficou marcado como o primeiro em que a Amazon vendeu mais e-books que livros impressos. O Kindle não é o único. Sony, Fujitsu, Samsung e outras fabricantes também têm os seus e-readers. No início deste ano, a Apple lançou o iPad – um computador sensível ao toque que permite, além de navegar na internet e ouvir músicas, ler os ebooks. E há uma expectativa do mercado em torno de novidades que podem ser apresentadas pelo Google. Diante disso, as livrarias estariam fadadas ao mesmo destino que tiveram as lojas de CDs e videolocadoras com o advento das músicas e vídeos na internet?
Páginas em branco
Um movimento que se observou ao longo de décadas foi o desaparecimento das livrarias de bairro, menores, e a concentração das grandes redes. Fabio Cipriani, consultor de estratégia de mercado e consumidor da Deloitte, aponta o comércio eletrônico como outro fator que exigiu da Saraiva e da Cultura, por exemplo, oferecer mais que livros. Hoje, é possível ir a uma loja e comprar itens de informática, jogos, assistir a exposições e palestras e até tomar um café.
Com os livros eletrônicos e os leitores digitais feitos para eles não deve ser diferente. Cipriani ressalta que, ao menos no médio prazo, o que deve acontecer é uma divisão entre os formatos, não uma substituição imediata. Silvio Meira, cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR), é categórico: os e-readers de hoje estão longe do que esse mercado virá a ser. Assim como o primeiro carro criado por Henry Ford, ou o videogame Atari em comparação ao Playstation 3 ou XBox de hoje, não são Kindles ou iPads que transformarão o mercado e o hábito das pessoas.
“Quero um livro em que eu possa escrever, compartilhar o conteúdo nas redes sociais e saber o que os outros acham sobre isso também”, diz Meira, que lê dezenas de livros ao mesmo tempo – alguns impressos, muitos digitais. E o cientista profetiza: a mudança estará consolidada quando der para fazer com o digital o que já se fazia com o analógico e um conjunto de outras ações que não eram possíveis anteriormente. E isso não será apenas pelos e-readers, mas, sim, por PCs, laptops e celulares, com uso de tecnologias como realidade aumentada, entre outras.
É um caminho sem volta, mas com grande distância a ser percorrida. Patrícia Nina, diretora de operações da Fnac no Brasil, chegou com essa visão da viagem que fez recentemente à matriz na França. Lá visitou unidades da rede e viu os cinco modelos de e-readers à venda com uma infinidade de títulos em formato eletrônico. A sucursal daqui também deve começar a vender leitores digitais em breve. Porém o mercado francês é dominado por quatro ou cinco grandes editoras – o que facilita a negociação entre fornecedor e comerciante.
“No Brasil não temos quem concentre uma enorme quantidade de títulos, então o processo vai ser mais complexo”, observa Patrícia. “O próprio Kindle não dá acesso a qualquer conteúdo, só ao que está disponível pela Amazon. Diante do que existe numa livraria real, a virtual é o começo de um processo”, completa.
Cipriani corrobora que um entrave para a massificação dos e-books em português são as editoras. Poucas delas se arriscam a digitalizar seus títulos, com medo de que alguém quebre o código que protege os direitos autorais e pirateie na internet. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente uma ordem de R$ 3,3 bilhões, segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL), com quase 350 milhões de exemplares produzidos. Por conta disso, em outubro do ano passado a CBL reuniu representantes de três editoras para avaliar as possibilidades e traçar uma estratégia para o setor na era da internet. O objetivo é não ser pego de surpresa, como aconteceu com as gravadoras.
Novo capítulo
Em maio do ano passado, a Saraiva passou a vender e alugar vídeos pela internet. Com os livros digitais, não deve ser diferente. “É uma tendência, não tem como a gente falar que não vai acontecer”, avisa Pousada, que não nega o espaço importante que os e-books devem ocupar. Mesmo assim, o executivo acredita que a substituição se dará numa velocidade diferente como a que ocorreu com o setor fonográfico. Porém substituir o papel pelo eletrônico deve demorar mais tempo.
“Música é instantânea. Já o livro convive por um tempo maior com a pessoa”, diz. Sergio Herz, diretor de operações da Livraria Cultura, considera esse um mercado “muito incipiente”, sem definição e que precisa ser avaliado. E diz que, mesmo que as editoras optem pelo modelo virtual, nada vai mudar para a livraria, pois serão as detentoras dos títulos que vão ditar os preços.
“Como não existe um padrão, cada um está fazendo do seu jeito”, assinala. Por isso, desde março a Cultura comercializa 150 mil títulos em formato eletrônico que podem ser baixados em e-readers ou computador. A maioria é em inglês, por conta da indefinição no mercado brasileiro.
O fator preponderante, entretanto, será a mudança de hábito. Herz, que acabou de ler “A lógica do Consumo”, e Patrícia, que concluiu “O Poderoso Chefão”, já testaram a leitura no Kindle… e não gostaram. Pousada, da Saraiva, é outro que prefere o livro de papel e diz que os e-books são vantajosos quando a questão é o acesso rápido a algum conteúdo. Seja nos e-readers ou mesmo em computadores, o desafi o será convencer os leitores a trocarem as cores, a capa bem trabalhada, a sensação que se tem ao folhear as páginas e o cheiro dos livros em papel pela insipidez dos virtuais.
Meira, do CESAR, não sabe especificar quando os impressos serão substituídos, mas tem certeza de que isso ocorrerá. Ele cita o exemplo do automóvel, que levou três décadas para ganhar a preferência dos usuários. “Se levar esse tempo para o e-book substituir o papel, tudo bem”, contenta-se. Como pontos a favor estão o interesse das gerações mais jovens pelas novidades tecnológicas e a chance de atingir os rincões do País – aonde livros comuns não costumam chegar.
Já as livrarias, em seu formato atual, devem sumir do mapa. “O que vão existir são butiques superespecializadas”, aposta Meira. Como algo que ainda está acontecendo, não se sabe como essa história vai terminar. Os varejistas devem estar prontos para a metamorfose – talvez centralizando as operações em suas lojas online. Deve levar algum tempo para que isso ocorra. Mas, como diria Machado de Assis, uma coisa é certa: “o futuro nunca se engana”.
Fonte: Consumidor Moderno No Varejo